quarta-feira, 18 de março de 2015

CRÔNICA:

ANTÔNIO DAS ALMAS – O MULATO BENFEITOR
Ivan Pinheiro*
Dos inúmeros temores da minha meninice, a maioria arrogada pelos familiares para me manter em casa ou inibir minha ida a algum lugar guardo, com nitidez, lembranças arrepiantes de cidadãos que me metiam medo, muito medo. Lembro-me que certa vez cheguei a fazer xixi no calção, já que calça era coisa de adulto.

Chico Doido, Miguel da Lata, Perdido, Zé Vidal, Girome, Chico Veneno, Antônio das Almas... Eram tantos! Muitos desses faziam-me mudar de calçada ou retornar a toda carreira em qualquer circunstância. Geralmente, às escondidas, ficava acompanhando com o olhar a trajetória do “espantoso maluco” para retomar o caminho e concluir o meu destino.

Confesso que meu maior pânico era quando me deparava com Antônio das Almas (não encontrei ninguém que tivesse a certeza de onde ele veio... Surgiu. Dizem que tinha familiares em Pendências). Não tenho notícias de que ele tenha dado alguma carreira numa criança em todo o seu convívio em Assu. Os outros sim aconteciam com frequência, até por que eram provocados pela garotada, geralmente, influenciada pelos adultos.

Mas para “aperrear” Antônio das Almas era preciso coragem. Grandalhão, moreno, musculoso, maltrapilho (chapéu velho de palha na cabeça, camisa surrada e amassada, calça segurada na cintura por um pedaço de corda fazendo vez de cinto – que também servia para outras atividades -, pernas arregaçadas, pés descalços - dificilmente usava alpercatas). O cachimbo e um cassetete (um porrete de madeira) completavam sua indumentária. O mais aterrorizante: morava basicamente no cemitério. Ou seja, num quartinho ao lado, situado a atual Rua 29 de outubro. O local era conhecido como “Casa das Almas”. Lá eram guardados os caixões de defuntos para pobres e cadáveres desconhecidos. Tinha um branco para anjos, outro lilás para moças donzelas e o terceiro (o mais arrepiador - era preto retinto, com detalhes prateados) para os demais.   

Cabe uma reserva. Quem já passou dos cinquenta sabe dessa realidade: Até final dos anos sessenta, meados dos anos setenta (com menor intensidade) a maioria dos pobres se enterrava em redes. As criancinhas (anjos) eram transportadas até o cemitério em caixas de sapatos, telhas de olaria ou caixotes de madeira improvisados pelos familiares. A pobreza, à época, era franciscana - como costumava dizer o saudoso João Marcolino de Vasconcelos – Dr. Lô.

O leitor poderá até perguntar: Por que somente três caixões? Porque todos retornavam àquela “Casa das Almas”. O(a) falecido(a) era colocado(a) na cova sem caixão. Depois mudaram o “depósito funerário” para a Igreja Matriz no patamar de onde se toca(va) o sino - primeiro andar do lado esquerdo.

E quem era responsável para levar e trazer de volta aqueles horrorosos caixões? Quem?... Antônio das Almas. Sabe o que era se deparar, num beco estreito, com aquele homenzarrão conduzindo um caixão preto nas costas, vindo em sua direção? Terror!

Uma determinada vez eu caminhava displicentemente pelo “Beco do Padre” (mais parecia um funil, começava razoavelmente largo e terminava estreito em frente à casa de Edgard) quando, de súbito, quase topei com o dito cujo... Fiz um giro de 180 graus tão rápido que o vento e a areia fizeram redemoinho. Acho que cheguei a cair, mas acredito que não toquei no solo. Levantei numa rapidez indescritível já muito próximo de Antônio das Almas que, rindo da situação (acredito), bateu fortemente seus pés no chão. Pernas pra que te quero... Esgoelando-se cheguei à minha casa em segundos, todo mijado.   

Pois bem, continuando: Antônio das Almas era comunicado da morte e levava o ataúde, no ombro, até a residência do(a) falecido(a). Passava a noite ou o tempo necessário “bebendo o defunto” e, ao final, segurando uma das abas do caixão, acompanhava o cortejo fúnebre com destino ao cemitério São João Batista passando, quase sempre, pela Igreja Matriz para as exéquias.

Ao chegar ao Cemitério o caixão era assentado à beira da sepultura e, quando não apareciam familiares e/ou voluntários para ajudá-lo a retirar o corpo do ataúde, com naturalidade, ele descia para a cova, se agarrava com o cadáver e colocava-o no interior do sepulcro.

Na verdade Antônio das Almas que vivia ao “Deus dará” era um voluntário para servir aos pobres com ações humanitárias, gestos incomparáveis... Um cidadão de boa alma.  

Nas horas vagas fazia favores braçais para as pessoas mais afortunadas, como cuidar das sepulturas, carregar água, lenha, dar fim aos animais mortos, entre outras atividades à custa de quase nada, financeiramente. Uma cuia de farinha, feijão, açúcar e às vezes um pedaço de salgado (carne ou peixe) servia como pagamento.

Já adulto, tomei conhecimento que o então vereador Durval de Sá Leitão propôs aos colegas da Câmara Municipal do Assu a concessão de um Título de Cidadão Assuense ao Antônio das Almas, entre muitos outros. A propositura (já esperada pelo Edil) foi rejeitada pelos nobres representantes do povo. Resultado: Durval nunca mais retornou a Câmara Municipal perdendo o mandato por abandono de função.

O tempo passou e devidamente abandonado, já alquebrado pelo tempo, doente e injustiçado, Antônio das Almas retornou ao seu solo berço para o convívio dos familiares e por fim poder repousar eternamente no campo santo de sua terra natal (?).

Aquele peregrino, na sua ingenuidade, tinha a consciência (quem sabe?) de que existiam muitos irmãos precisando da sua força divina transformada em caridade, amparo material e espiritual. Assim, sem receio ou vergonha, se apequenou perante o povo e, com determinação, derramou muito suor e lágrimas em favor da causa, criando a identidade expressiva da sua personificação. Atitudes raras, digo até, inimagináveis, nos dias atuais.

*Ivan Pinheiro Bezerra – Historiador e escritor contista.
Desenho ilustrativo: Ivan Pinheiro 

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