segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

CONTO


O CORPO DE CRISTO
 
A velha casa alpendrada era a maior da comunidade de Juazeiro. Seu proprietário era o negro Jacinto, descendente dos índios Janduís. Sua bisavó tinha sido capturada pelo Terço dos Paulistas a “casco de cavalo” – como diziam os mais velhos. Foi um dos primeiros moradores da redondeza. Ele era um sujeito analfabeto. No entanto, portava-se como uma espécie de pajé. Pacificador de todos os problemas surgidos na pequena comunidade de Juazeiro situado à margem da Lagoa do Piató.
Jacinto era “pau pra toda obra”. Caçava, pescava, plantava, criava bodes, jumentos e uma meia dúzia de vacas para o fornecimento do leite da sua numerosa família. Os currais de troncos de carnaúbas ficavam no lado sul da casa. A labuta diária tinha início muito cedo. A meninada ajudava de conformidade com a idade. Ninguém tinha direito a dormir após as quatro horas da manhã: arriar os animais, tirar leite, despescar as redes na lagoa, tirar ração para o gado, cuidar do roçado, botar água nos potes para o consumo da casa... Eram tarefas que o velho Jacinto não precisava mandar executar.
À tardinha, depois que o vento norte caía, ele colocava uma cadeira espreguiçadeira no alpendre e esperava a noite chegar para comer sua coalhada com rapadura raspada e cuscuz de milho zarolho. Não sem antes, juntamente com sua esposa, dona Luzia, reunir toda a família e alguns vizinhos para rezarem o tradicional terço.
O lar humilde do velho Jacinto e Luzia era visto por todos como exemplo. Uma prole de 09 filhos. Vida ordeira. Família pacata. Meninos respeitadores e meninas direitas e honradas. Nas festas de São João, todos vinham no velho carro de boi, participar das novenas e da procissão de encerramento. Ninguém se atrevia a pedir Madalena em namoro, apesar dos seus 19 anos. O mesmo acontecia com as outras duas irmãs, Maria Inácia de 16 e Maria de Fátima de 15 anos. Flertes existiam, mas terminada a celebração subiam todos no carro de boi e retornavam para Juazeiro.
A rotina só era quebrada com as constantes secas, períodos em que a fome e a sede assolavam os animais e as pessoas de toda a região. Uma destas foi terrível. A estiagem se prolongou por quase cinco anos. Em 1919 a Lagoa do Piató chegou ao porão. O velho Jacinto e seus filhos, praticamente atolados na lama, disputavam com as garças os últimos e resistentes peixes: traíras, carás e alguns Mané besta.
As vazantes não produziam mais feijão nem batatas. A caça tinha desaparecido. Os moradores de Juazeiro migraram quase todos para a cidade do Assu em busca de frentes de trabalhos. Outros arriscaram viagem para o sudeste na esperança de escapar. Até os três filhos mais velhos de Jacinto: Emanoel, José e Luiz rumaram nesta aventura. Nunca mais a família tinha ouvido falar deles.
Jacinto resistia. Rogava a Deus todos os dias para mandar chuva. Não sairia daquele torrão. Só morto. Os filhos mais novos que ficaram: Amaro, Expedito e Manoel buscavam xiquexique na caatinga, cortavam, assavam e todos comiam. A água potável também estava escassa. A única cacimba estava minguando. Restavam apenas duas reses. Ainda estavam vivas graças ao xiquexique, a macambira e o restinho da água do porão da lagoa. De tão magras já não tinham quase leite. Naquele ano, não participaram da festa de São João. O padre Honório reconhecendo o estado de calamidade realizou tão somente um tríduo.
Véspera de Natal caiu uma forte chuva. Teve início à tardinha e só parou quase meia noite. O relâmpago clareava o céu e os estrondos dos trovões, ameaçadores, forçavam para que ficassem todos juntos sobre a velha cama do casal com colchão de junco, com medo de serem atingidos pelos coriscos... Pratos de ágata foram jogados no terreiro para acalmar a tempestade.  
O ano de 1920 foi de fartura. No entanto, Jacinto vinha sentindo umas dores nas costas, devido uma gripe mal curada adquirida nas lamas da lagoa. De madrugada, quando foi arrear um bezerro, ao fazer esforço foi acometido por um surto de tosse. Cuspiu sangue... Nunca mais teve saúde. Diagnóstico: tuberculose. Ele sabia que sua morte era uma questão de dias.
Toda a comunidade se compadeceu da doença de Jacinto. Afinal era o líder maior daquela redondeza. Homem de respeito, servidor, temente a Deus... Era bom. Sua morte seria uma grande perda para Juazeiro e região.
A doença se agravou. Curandeiros, remédios caseiros, promessas... A família já tinha se valido de tudo, mas a enfermidade era muito grave... Incurável. Dona Luzia pediu aos seus filhos Amaro e Expedito para irem a Assu chamar Padre Honório para dar a extrema unção.
Quando Padre Honório chegou a Juazeiro, conduzido pelos dois jovens, o alpendre da casa de Jacinto estava repleto de parentes e amigos. Todos queriam acompanhar os últimos momentos daquele homem que na vida demonstrou honestidade, liderança, amor a Deus, a sua família e a terra onde nasceu e viveu.
Padre Honório observou as feições de Jacinto e compreendeu que tinha que se apressar. Eram os minutos finais. Ajoelhou-se ao lado da cama e começou o ritual da extrema unção ao enfermo. Ungiu com óleo a testa do paciente que reagiu esboçando um leve gesto de alegria e alívio...
Na conclusão da breve pregação Padre Honório colocou na boca do velho Jacinto a hóstia consagrada... Neste mesmo instante ele deu o último suspiro jogando um jato de sangue sobre o solo de barro batido. Padre Honório olhou para o chão e apanhou a hóstia ensanguentada. Vendo que o enfermo havia falecido, o sacerdote elevou a hóstia sobre a cabeça adorando-a e numa demonstração de fé e veneração à doutrina Cristã, comungou o Corpo de Cristo.         

Texto: Dez Contos & Cem Causos - Ivan Pinheiro

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